A Conexão Neoplatônica
“Era Bembo um iniciado?”, perguntava-se Rachel Pollack contemplando a postura do Enforcado no Tarô Visconti-Sforza, um dos mais antigos que se conhece, pintado pelo artista Bonifacio Bembo no séc. XV. Foi Bembo o primeiro a representar o Enforcado de cabeça para baixo, pendurado pelo pé, com uma perna cruzada atrás da outra. Um dos significados atribuídos ao Arcano XII é o de um ritual de iniciação e, depois de traçar alguns paralelos com a mitologia nórdica, a Alquimia e o Yoga, Pollack escreve: “E se ele incluiu uma referência a práticas esotéricas, não poderiam as outras imagens, que superficialmente formam um comentário social, representar na realidade todo um conjunto de conhecimento oculto?” Comentando que as cartas do Tarô Visconti-Sforza praticamente exigem uma interpretação esotérica, Pollack observa: “E no entanto, se existe alguma evidência em algum lugar conectando Bembo ou a família Visconti a algum grupo ocultista, nenhuma foi trazida ao escrutínio público.”
A questão está mal-colocada desde o princípio, porque pressupõe que o conhecimento esotérico só pode ser transmitido por sociedades secretas como a Maçonaria ou a suposta Ordem Rosacruz cujos manifestos, publicados no séc. XVII, deram início ao fetiche por grupos ocultistas e ordens esotéricas. O detestável René Guénon, que quando não está ocupado demais sendo um reaça proto-fascista até tem uma que outra coisa a dizer, chegou a sugerir que existia uma sociedade secreta na Itália pré-renascentista, chamada os Fedeli d’Amore (“Fiéis do Amor”), da qual teriam feito parte poetas como Guido Cavalcanti e Dante Alighieri, que menciona o grupo pelo nome em seu Vita Nuova. Mas não existem outras referências além de Dante, e a maioria dos críticos considera Fedeli d’Amore como uma expressão poética, indicando fidelidade ao amor que ele cantava em seus poemas. A verdade é que nos sécs. XIV e XV, o conhecimento esotérico tinha menos a ver com supostas sociedades secretas e mais com a redescoberta do Neoplatonismo e do Hermetismo pelos filósofos e artistas que estavam dando o pontapé inicial no Renascimento. E no círculo de pintores e poetas que se formou ao redor da família Visconti, o que não faltava eram neoplatônicos.
Inclusive um certo poeta chamado Francesco Petrarca.
Hércules na Encruzilhada
O Tarô como conhecemos atualmente é a união de dois desenvolvimentos independentes que acabaram convergindo em algum ponto entre o séc. XIV e o XV. De um lado, um jogo de cartas de origem chinesa que os muçulmanos difundiram pelo mundo e que foi introduzido na Europa ou quando a Península Ibérica estava sob domínio islâmico ou quando os Cruzados voltaram da Terra Santa trazendo várias inovações e conhecimentos que aprenderam com o inimigo – e que não foram poucas, uma vez que na época, a Civilização Islâmica era a mais avançada do mundo.
Composto por dez cartas numeradas, mais três cartas com figuras, que foram adaptadas para o contexto europeu como Rei, Cavaleiro e Valete ou Pajem, aos quais depois se acrescentou uma quarta carta, a Rainha, esse jogo tornou-se o baralho atual, no qual Cavaleiro e Valete acabaram se fundindo. Paralelamente, e mantendo as quatro cartas, que atualmente são conhecidas como as Cartas da Corte, o baralho foi incorporado ao jogo de Taroccho ou Tarocchi, e se tornou os Arcanos Menores do Tarô atual.
Existem alguns indícios, mas longe de serem conclusivos, de que o baralho sino-árabe já era utilizado para ler a sorte, e pode ter sido isso que mais tarde deu a ideia de fazer o mesmo com o Tarô. Mas originalmente, a função do que hoje conhecemos como Arcanos Maiores era bem diferente. Há várias teorias sobre as origens dos Arcanos, mas a mais sólida é a de que eles evoluíram a partir das notæ que os monges medievais usavam para estudar e que, para ajudar na memorização, eram ilustradas com imagens vívidas representando o tema da lição sob a forma de alegorias.
Uma das mais famosas, que remonta a uma fábula contada por Xenofonte, é Hércules na Encruzilhada, também conhecida como Hércules Entre a Virtude e o Vício, que mostra o herói grego tendo que optar entre duas mulheres, e que inspirou o Arcano VI do Tarô, Os Amantes. As quatro Virtudes Cardeais, inclusive, eram um tema comum das alegorias e notæ, e pelo menos três delas foram explicitamente incorporadas ao Tarô, onde continuam morando até hoje: a Justiça, a Força (Fortitude) e a Temperança. Falta apenas a Prudência, mas alguns autores sugerem que ela estava presente e acabou mutando no Arcano XII ou no XXI.
As notæ e alegorias medievais são descendentes da antiga Arte da Memória, desenvolvida pelos retóricos greco-romanos como forma de ajudar a decorar discursos, associando os tópicos da fala a figuras, que são mais fáceis de memorizar. Essa prática está na raiz das mnemotécnicas que alguns estudantes continuam usando a fim de estudar para as provas, e no início não tinha nada de esotérico ou oculto envolvido. Mas entre o final da Idade Média e o Renascimento, o grupo de neoplatônicos que mais tarde passariam a se intitular magos se apropriou da técnica e passou a empregá-la para fins muito mais interessantes.
A Arte da Memória renascentista, que a historiadora britânica Dame Frances A. Yates estuda no clássico The Art of Memory, alcançaria seu apogeu no séc. XVI com o Teatro da Memória de Giulio Camillo, mas segundo Robert M. Place, as notæ já estavam sendo ressignificadas pela magia medieval como um instrumento que, da mesma forma que o Iynx dos neoplatônicos antigos, do qual falamos na edição anterior, servia para elevar a consciência por meio da invocação das forças arquetípicas:
Na Idade Média, magos comumente faziam uso de imagens chamadas notæ, imagens vívidas em geral baseadas em símbolos astrológicos que o mago visualizava enquanto recitava encantamentos para ajudá-lo a invocar os poderes arquetípicos. […] As imagens continham dentro delas informações que poderiam ser relembradas e ativadas pela visualização, e o poder poderia ser projetado para planos mais elevados de consciência por meio da manipulação das imagens.
Sabemos concretamente que o desenvolvimento do Tarô está ligado ao das notæ não só pela presença das quatro Virtudes Cardeais entre os Arcanos Maiores ou pela semelhança entre o Arcano VI e a alegoria de Hércules, mas também porque nos Tarôs mais antigos, como o Mantegna Tarocchi, as cartas são ilustradas justamente com os temas que os monges medievais estudavam com o auxílio das notæ: além das Virtudes Cardeais, as Nove Musas, as Sete Artes Liberais, e assim por diante.
A diferença é que nesses Tarôs mais antigos, o número e a ordem dos trunfos (como os Arcanos eram chamados até o séc. XVIII) não estavam estabelecidos. O primeiro Tarô que se conhece com vinte e um trunfos, que correspondem aos Arcanos Maiores contemporâneos, mais ou menos nas mesmas posições atuais com ligeiras variações, é precisamente o Visconti-Sforza que mencionamos no início e que, assim, tornou-se o ancestral imediato do Tarô atual.
Mas onde entra Petrarca nessa história? É que, como informa Frances Yates, Petrarca era reconhecido no Renascimento como um dos grandes mestres da Arte da Memória, do qual, séculos depois, mesmo Giordano Bruno, talvez o mais famoso dos magos renascentistas, se considerava discípulo. E de acordo com pelo menos uma autora, Petrarca foi o inspirador direto do Visconti-Sforza.
De Triunfos e Alegorias
Escrito por uma bibliotecária estadunidense chamada Gertrude Moakley, o primeiro estudo iconográfico sobre as origens da imagética dos Arcanos, Tarot Cards Painted by Bonifacio Bembo for the Visconti-Sforza Family, foi publicado em 1966 e, de acordo com especialistas em história da arte, muitas de suas conclusões continuam válidas até hoje. Nos meios ocultistas, o nome de Moakley não é muito reconhecido, por razões óbvias: em vez de endossar as hipóteses fantasiosas de autores como Court de Gébelin e Éteilla, que continuam inexplicavelmente populares e fazem os Arcanos do Tarô derivarem de supostos relevos em antigos templos egípcios até hoje nunca descobertos, Moakley apontou a inegável semelhança entre pelo menos algumas das cartas pintadas por Bembo e os carros alegóricos usados nos Triunfos renascentistas.
Em Roma, o Triunfo era um desfile celebrando generais e outros líderes militares por seu sucesso no campo de batalha. O costume foi revivido no início do séc. XIII por Frederico II e se tornou uma verdadeira febre no Renascimento, quando tudo era pretexto para uma procissão triunfal: não só vitórias militares, mas também casamentos, funerais, datas cívicas, feriados religiosos e muito particularmente o Carnaval. As duas coisas ficaram tão associadas na consciência coletiva que durante muito tempo acreditou-se que a palavra Carnaval derivava de carrum numa alusão aos carros alegóricos, que não existiam nos Triunfos antigos, mas se tornaram a marca registrada de sua versão renascentista e continuam marcando presença no Carnaval brasileiro.
O que é interessante porque não só o Carnaval é uma festa intimamente associada a Dionísio – junto com as Saturnálias romanas, os festivais dionisíacos da antiga Grécia são considerados os antecessores do Carnaval cristão – como a própria palavra triunfo, via latim triumphus, deriva em última análise do grego θρίαμβος, hino a Dionísio. Isso sugere fortemente que antes dos romanos transformarem os Triunfos numa egotrip militar, eles eram procissões religiosas consagradas ao deus. De fato, antes de ser o Rei dos Carnavais brasileiros, Momo era uma divindade menor do cortejo dionisíaco, frequentemente identificada ao próprio Dionísio. Quem vem acompanhando a newsletter desde sua primeira edição sabe que nosso fio condutor foram as relações entre o Tarô e Dionísio e, desse ponto-de-vista, não é coincidência que antes de serem rebatizadas de arcanos no séc. XIX por Jean-Baptiste Pitois, um discípulo de Éliphas Lévi mais conhecido como Paul Christian, as cartas do Tarô fossem chamadas de triunfi.
Como a própria expressão deixa claro, carros alegóricos eram representações sobre rodas das mesmíssimas alegorias medievais que ilustravam as notæ e as cartas dos Tarocchi mais antigos, e foram incorporados aos desfiles por influência de um dos maiores best-sellers da época, o poema I Trionfi, escrito por Francesco Petrarca entre 1351 e 1374.
Laura
Embora a transição de um período histórico para outro seja fluída e sem fronteiras nitidamente definidas, alguns historiadores consideram a redescoberta das cartas de Cícero por Petrarca como o marco zero do Renascimento, e ele foi, indiscutivelmente, um dos autores mais importantes do período. Fortemente influenciado por Dante, os poemas de Petrarca giram em torno de seu amor imorredouro por uma mulher misteriosa chamada Laura que, como a Beatriz de Dante, vai sendo colocada pelo poeta em um nível cada vez mais elevado, até praticamente identificar-se ao próprio Feminino arquetípico que Petrarca, de novo como Dante, chega this close de colocar acima da própria Virgem Maria.
Essa idealização é, evidentemente, a essência do amor romântico que, embora tenham raízes que remontam ao Amor Cortês e à erótica dos Trovadores (que o historiador suíço Denis de Rougemont faz derivar do gnosticismo cátaro), recebeu uma influência inegável da poesia de Petrarca. Podemos avaliar a extensão dessa influência pelo simples fato de que loura passou a significar “mulher de cabelos claros” por causa de Laura. Etimologicamente, o nome não tem nada a ver com a cor dos cabelos e vem de laurum, louro, a planta de cujas folhas, desde a Grécia antiga, se confeccionava a coroa dos poetas, por isso mesmo chamados de laureados. O louro era um sintema, uma planta consagrada a Apolo, deus da poesia, mas para os gregos, Apolo e Dionísio eram divindades complementares, cujos templos frequentemente ficavam lado a lado e, como apontamos na primeira edição, o deus que sempre foi representado com uma coroa de folhas era Dionísio.
O nome grego do loureiro é δάφνη (dáfne) e na mitologia grega, Dafne era uma ninfa pela qual o deus Apolo se apaixonou e perseguiu com a insistência de um stalker, até que, cansada de fugir, ela pediu a Zeus que a livrasse de vez do mala-sem-alça. Em vez de entregar a Apolo uma medida protetiva proibindo-o de se aproximar de Dafne, Zeus, que tinha sua própria cota de ninfas perseguidas, preferiu transformá-la em árvore, de cujas folhas um Apolo desolado confeccionou a coroa que se tornaria o protótipo da coroa dos poetas. Hoje em dia, o comportamento de Apolo seria considerado indiscutivelmente creepy, mas na época era interpretado como uma alegoria do poeta perseguindo a beleza inatingível e, por esse motivo, em muitos de seus poemas, Petrarca se coloca no lugar de Apolo, comparando explicitamente sua Laura a Daphne. O que levou muitos críticos a duvidarem até mesmo da existência histórica de Laura que, modelada explicitamente a partir da Beatriz de Dante, não seria senão uma personificação simbólica do Belo, que Platão e os neoplatônicos consideravam como a mais elevada das Formas arquetípicas.
O Uno e o Múltiplo
Tornou-se quase um clichê da crítica dizer que um dos temas centrais da poesia de Petrarca é a questão do Uno e do Múltiplo, e que esse é um dos motivos pelos quais ele é considerado um autor moderno. Mas vimos na edição anterior que o problema também interessava profundamente aos neoplatônicos antigos, que usavam o desmembramento de Dionísio como emblema da ruptura da unidade original da Consciência e sua fragmentação numa multiplicidade de consciências individuais. Transcender a multiplicidade e restaurar a unidade do Self era o propósito das práticas espirituais neoplatônicas e, segundo Gur Zak, do Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Jerusalém, também era a motivação de Petrarca:
O presente estudo, embora admitindo que a noção de fragmentação dominava a representação e a experiência de si de Petrarca, buscará, no entanto, mostrar que seus escritos – tanto em latim quanto no vernáculo – representam uma tentativa contínua de superar seu senso de desmembramento diacrônico e sincrônico, para encontrar – assim como os membros dos movimentos de reforma no final da Idade Média – uma solução para sua experiência “moderna” do eu temporal.
Petrarca contrastava esse eu temporal com o Self atemporal, que nos Trionfi corresponde à Eternidade (e ao Mundo em quase todos os Tarôs pós-Visconti-Sforza), e que, pelo menos na interpretação de Zak, o poeta concebia como um estado de consciência:
Na tentativa de Petrarca de lidar com sua experiência de fragmentação, (…) ele desenvolveu um novo programa ético, uma nova filosofia do self – baseada primariamente em um retorno à antiga tradição espiritual –, no centro da qual está a afirmação de que “self” não é uma presença dada, mas um estado de consciência do qual estamos exilados, ou ausentes, e que precisamos alcançar por meio do constante cultivo e cuidado, e particularmente por meio do uso da escrita como técnica espiritual (que, para ele, está sempre entrelaçada com a da leitura).
Ao longo do livro, Zak demonstra que os poemas dedicados a Laura fazem parte da tentativa de Petrarca de conciliar duas perspectivas opostas, a de Santo Agostinho e a de Dante, ambos, diga-se de passagem, também fortemente influenciados pelo Neoplatonismo, escola à qual o santo pertenceu antes de sua conversão. Após se converter, Agostinho voltou as costas terminantemente para qualquer veleidade de conciliar a busca pelo Uno e o desejo pelas coisas terrenas, ao passo que Dante, muito especificamente com a apoteose de Beatriz na Divina Comédia, buscava recuperar a dialética platônica de Eros, segundo a qual a contemplação da beleza humana pode servir de degrau para a ascensão espiritual da alma de volta para o Uno.
Para Petrarca não era possível ignorar seu desejo por Laura, mas a alternativa danteana revelou-se igualmente problemática porque tão logo ele tentava usar a paixão como combustível para acessar a esfera atemporal do Uno, o desejo carnal por Laura o arrastava de novo para a angústia do eu disperso e fragmentado no tempo. Os poemas reunidos no Rerum Vulgarium Fragmenta, mais conhecido como Il Canzionero, são a testemunha desse impasse.
E se eu estiver certo, Il Trionfi foi a saída que ele encontrou para o dilema.
I Trionfi e o Tarô
No frigir dos ovos, foram os poemas escritos para Laura que garantiram o lugar de Petrarca no que o Harold Bloom chamou de Cânone Ocidental. Mas seu maior sucesso na época foram I Tronfi, uma série de poemas alegóricos que Petrarca escreveu ao longo de vinte anos e publicados poucos meses antes da morte do autor. São, portanto, o testamento final do artista. Usando os Triunfos como metáfora organizadora, os poemas jogam com o duplo sentido da palavra, formando um desfile de entidades alegóricas que triunfam sobre a anterior apenas para serem desbancadas pela seguinte. Assim, o Amor triunfa sobre a humanidade, a Castidade triunfa sobre o Amor, a Morte vence a Castidade, a Fama triunfa sobre a Morte, o Tempo derrota a Fama, e a Eternidade triunfa sobre o Tempo.
Como observa Gertrude Moakley, “a ideia dos seis triunfos (…) era tão atraente que todo mundo queria ter uma cópia do poema, de preferência com ilustrações”. Foram essas ilustrações que, num feedback loop, influenciaram os próprios desfiles triunfais que tinham sido a inspiração do poema. A partir daí, os carros no desfile dos Triunfos passaram a imitar as alegorias do I Trionfi, com imagens vívidas e coloridas. A hipótese de Moakley é de que Bonifacio Bembo se baseou nesse novo modelo de Triunfo para criar as ilustrações do Visconti-Sforza, e seu principal argumento é a correlação entre a ordem adotada por Bembo para as cartas e o poema de Petrarca:
O final feliz vem com o triunfo da Eternidade, na qual Petrarca e Laura desfrutarão de eterna bem-aventurança. Os ilustradores mostram isso como uma imagem da Santíssima Trindade em cima de um carro puxado pelos “quatro seres viventes” que são o símbolo dos quatro Evangelhos: um homem, uma águia, um leão e um boi. No céu aparecem os principais prisioneiros deste triunfo, o Sol e a Lua, representantes do Tempo que eles medem. Na plena luz da Eternidade, eles não são mais necessários. É por isso que os trunfos dos tarocchi modernos trazem os quatro seres viventes em seus quatro cantos, e a Estrela, a Lua e o Sol são três dos trunfos mais altos do tarocchi.
As analogias entre o poema e os arcanos são inegáveis, e a interpretação sugerida por Moakley faz muito sentido. O núcleo da hipótese, porém, a saber, que a inspiração de Bembo foram os desfiles, e não o poema, é problemática. Apesar de ser o Tarô que mais se aproxima do atual, o Visconti-Sforza mostra a clara influência de dois baralhos anteriores, o Visconti di Modroni Tarocchi e o de Brambilla, que também foram criados a pedido de um membro da família Visconti. “Esses primeiros dois maços”, explica Helen Farley em A Cultural History of the Tarot, “foram feitos para o Duque Filippo Maria Visconti, mas Filippo Maria era um recluso, que raramente se aventurava além dos muros de sua residência”:
Além disso, ele detestava multidões e entretenimentos teatrais. Consequentemente, o carnaval em Milão não era o evento luxuoso e excitante que seria em outras cidades italianas como Veneza. Dado que suas preferências não se estendiam até esse tipo de diversão, é improvável que ele tivesse procurado reproduzi-las nos trunfos do tarô.
A maneira de resolver essa contradição é cortar o intermediário e assumir que, senão Bembo, os autores do Modroni e do Brambilla se inspiraram diretamente no poema de Petrarca. O que é bastante plausível, considerando que Petrarca também frequentava a corte da família Visconti, muito antes que ela se unisse aos Sforza em 1432, com o noivado entre Francesco Sforza e Bianca Maria Visconti, evento que, segundo Moakley, é comemorado pelo Visconti-Sforza, que incorpora os emblemas das duas famílias em várias de suas cartas. Dessa forma, a influência do poema poderia estar presente independentemente dos Triunfos populares. Por que isso é importante? Porque, nas palavras de Robert M. Place, “o I Trionfi parece basear-se no modelo de Platão de ascensão pelas três partes da alma”:
Para Platão, a alma tinha três partes. Primeiro, a alma do apetite, ou desejo, que é a parte mais baixa, que nos amarra à realidade física por suas necessidades. A segunda era a alma da vontade, ou do espírito, que era a alma heroica que ajuda a pessoa a se elevar acima das limitações físicas em busca da fama e do prestígio. A terceira era a alma da razão, o aspecto mais elevado, que é a inteligência e insight que percebem o mundo puro, além do físico.
É importante lembrar que para Platão e os neoplatônicos, o Intelecto (Nous) não tinha nada a ver com o sentido moderno, racionalista do termo, e designava não a razão, como diz Place, mas sim a parte da alma capaz de contemplar diretamente as Formas arquetípicas. Gertrude Moakley aponta vários indícios sugerindo que, como as notæ que originaram os Arcanos Maiores e diferente de seus contemporâneos, antecessores e sucessores, o Visconti-Sforza não foi criado como um jogo de cartas, e sim como um instrumento de contemplação: “As cartas são pintadas e iluminadas em papelão pesado. Cada carta mede 175 x 87 milímetros e é muito grossa, tão grossa que é difícil imaginar que o conjunto tenha sido usado para um jogo real.” Em contraste, as cartas que a família realmente usava para jogar são menores, mais finas e mostram claros sinais de desgaste pelo manuseio. Tudo isso mostra não só que “as cartas de Bembo devem ter sido muito estimadas”, mas principalmente que elas foram criadas para serem vistas.
Uma vez que Petrarca era unanimemente apontado como um dos mestres na Arte da Memória, não é impossível que a inspiração para I Trionfi tenha vindo das notæ que ele usava para meditar, ou até mesmo de um Tarô mais antigo que hoje se perdeu. O que é indiscutível é o sentido místico de seus poemas que, se foram mesmo a (inspiração da) inspiração do Visconti-Sforza, lançam sérias dúvidas sobre o consenso dos historiadores de que o Tarô só veio a adquirir seu significado esotérico no séc. XVIII. Do que não resta a mais remota dúvida é que existe uma relação entre o Tarô e o poeta: na época, o Tarô também era conhecido como il Giuocho del Trionfo del Petrarcha.
O Jogo do Triunfo de Petrarca.
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