O Espelho de Dionísio
Continuamos explorando as conexões entre o Tarô e o esoterismo antigo, desta vez centrando o foco na Antiguidade Tardia e no Neoplatonismo que está na raiz da Tradição Esotérica Ocidental
Ao descrever o Louco do Tarô como Dionísio, Liz Greene se refere a ele como “o Duas Vezes Nascido”. A expressão, que é um dos muitos epítetos do deus na antiga Grécia, refere-se ao mito de origem de Dionísio que, segundo a versão exotérica da história, faz parte das literalmente centenas de filhos bastardos que Zeus saiu espalhando pelo mundo ao trair a esposa Hera com outras deusas, mortais, ninfas e praticamente qualquer coisa capaz de se mexer. No caso de Dionísio, a mãe era uma mortal, Sêmele, que, instigada pela própria Hera, pediu a Zeus que lhe mostrasse sua verdadeira Forma divina. Zeus alertou que nenhum mortal é capaz de contemplar a Forma real dos deuses e sobreviver, mas Sêmele insistiu e, como o deus tinha prometido realizar qualquer desejo dela, não teve outra escolha a não ser se revelar. Como Zeus tinha advertido, Sêmele, que estava grávida de Dionísio, imediatamente tombou morta. Zeus então retirou o embrião do ventre da falecida e, com a ajuda de Hefesto, costurou-o em sua própria coxa, de onde Dionísio nasceu ao completar o período de gestação.
A versão esotérica da história, que faz parte dos Mitos Órficos, é um pouco diferente, e é o motivo pelo qual Dionísio veio a ser considerado como um símbolo da Consciência universal da qual nossas consciências individuais são fragmentos dispersos no mundo material.
Diasparagmós
O Orfismo, junto com o Pitagorismo, foi um dos mais importantes movimentos religiosos da Grécia clássica, que remontava suas origens ao mítico poeta Orfeu. Foi também pioneiro na reinterpretação simbólica ou alegórica da mitologia, influenciando Sócrates, Platão e os neoplatônicos, dos quais ainda falaremos bastante, porque eles têm tudo a ver com as origens do Tarô.
De acordo com os historiadores, o Orfismo é um rebento da religião dionisíaca mais antiga, depois que ela foi influenciada por conceitos da filosofia pré-socrática. É por conta dessas origens que o mito de Dionísio ocupa um lugar central na teologia do Orfismo.
Na versão órfica, o primeiro Dionísio, às vezes chamado também de Zagreus, era filho de Zeus e Coré (Perséfone). Quando Dionísio era criança, Hera, enciumada, instigou os Titãs contra ele. Os Titãs atraíram o menino com vários brinquedos, entre os quais um espelho. Enquanto a criança, fascinada, contemplava a própria imagem refletida, os Titãs se aproximaram por trás, esquartejaram e devoraram Dionísio. Furioso, Zeus fulminou os Titãs com um raio, mas conseguiu resgatar o coração ainda palpitante do filho, que implantou em uma mortal, justamente Sêmele. Foi das cinzas dos Titãs, ainda com a carne de Dionísio no estômago, que a humanidade foi criada, e é por esse motivo, segundo o Orfismo, que os seres humanos têm uma natureza dual: o corpo físico, com seus apetites e desejos, é um reflexo de nossa herança titânica, mas temos também uma centelha espiritual que, paradoxalmente, se origina da carne do deus.
O desmembramento de Dionísio, que em grego é chamado de διασπαραγμός (diasparagmós), é um conceito-chave da religião órfica, com um simbolismo análogo e talvez diretamente influenciado pelo mito do esquartejamento de Osíris por Seth na mitologia egípcia. De fato, no Período Helenístico, Dionísio e Osíris eram costumeiramente sincretizados. E é com o corpo desmembrado de Osíris que Jodorowsky compara o Tarô:
A tarefa iniciática consiste em unir os fragmentos até recuperar a unidade... Partimos de um maço de cartas, misturamos os Arcanos e os distribuímos sobre uma superfície, isto é, despedaçamos Deus. Interpretamos Deus, reunimos Deus em frases. O leitor iniciado (Ísis, a alma, o alento) em uma busca sagrada reúne os pedaços. O Deus ressuscita, já não na dimensão imaterial, mas no mundo material. Com o Tarot se compõe uma figura, uma mandala, que permite abarcá-lo inteiro com um só olhar.
Arquétipos e Ação Divina
Os neoplatônicos não se consideravam “neoplatônicos”, termo que só foi criado pelos acadêmicos alemães no séc. XVIII. Os neoplatônicos viam a si mesmos apenas como continuadores da filosofia de Platão, sua principal referência. Mas, surgido por volta de 245 d.C., no efervescente caldeirão cultural da Antiguidade Tardia, o Neoplatonismo absorveu influências egípcias e orientais que o transformaram em algo bem diferente do que nós, hoje em dia, costumamos definir como “filosofia”.
Na visão neoplatônica, nossas almas individuais vieram do Uno, a Consciência universal que os próprios neoplatônicos identificavam a Deus. Ao encarnar, nós nos esquecemos de nossas verdadeiras origens, e o propósito mais elevado da Filosofia é não só fazer com que nos lembremos, mas permitir que nossas consciências individuais ascendam de novo em direção ao Uno. Para isso, combinavam o estudo intelectual com práticas contemplativas e rituais mágicos, especialmente invocação aos deuses que, muito antes de Jung, os neoplatônicos já consideravam como a manifestação personificada de energias arquetípicas universais. Usavam inclusive esse termo mesmo, energia, ou melhor, energeia (ἐνέργεια), que os neoplatônicos definiam como a forma específica de manifestação ou atividade (em grego érgon, ἔργον) de um arquétipo.
Aliás, o próprio termo arquétipo (em grego, ἀρχέτυπον) é de origem neoplatônica, e foi criado como sinônimo das Formas ou Ideias, as estruturas universais que Platão considerava como o nível mais elevado da realidade, da qual nosso mundo material é só um reflexo distorcido. E o nome que os neoplatônicos usavam para descrever seus rituais, teurgia (θεουργία, “ação divina”), foi incorporado ao vocabulário da Tradição Esotérica Ocidental, onde continua sendo usado até hoje para se referir à magia cerimonial, especialmente operações de invocação e evocação. Não por acaso. As raízes da Tradição Esotérica Ocidental vêm do Neoplatonismo, direta ou indiretamente, via Hermetismo (que é o Neoplatonismo combinado à religião egípcia dos sécs. II e III d.C.), Gnosticismo (que é o Neoplatonismo absorvido pelas religiões judaico-cristãs) ou Alquimia (que remonta provavelmente aos babilônicos, mas que no final da Antiguidade voltou-se para o Neoplatonismo em busca de justificação teórica). De fato, alguns nomes da época, como Zózimo de Panápolis (que Jung analisa em um de seus Estudos Alquímicos), eram ao mesmo tempo filósofos neoplatônicos, alquimistas, hermetistas e gnósticos.
O Dionísio Neoplatônico
Como os órficos antes deles, os neoplatônicos davam grande importância ao mito de Dionísio, que o fundador da escola, o filósofo egípcio-romano Plotino, interpretava como uma alegoria da aparente queda da Consciência na matéria. Aparente porque, de acordo com Plotino, a alma nunca caiu de verdade, uma vez que sua essência espiritual – que em grego é chamada de Nous (Νοῦς) e em latim de Intellectum (mas que não tem nada a ver com a concepção racionalista, esvaziada, que o termo veio a adquirir) – continua firmemente ancorada no Uno. Em sua obra mais importante, as Enéadas (que têm esse nome porque são compostas de ensaios reunidos em grupos de nove), Plotino escreve:
As almas dos seres humanos viram as imagens de si mesmas como se fosse no espelho de Dionísio e seguiram naquela direção, partindo do Mundo Inteligível [o mundo das Formas arquetípicas], mas ainda assim, não foram totalmente cortadas de sua origem ou do Intelecto. Pois elas não desceram com o Intelecto, e embora por um lado tenham descido tão longe quanto a Terra, por outro suas cabeças continuam “firmemente fixadas acima dos céus”.
Assim, embora os neoplatônicos acreditassem em reencarnação (ou metempsicose, que era o termo usado na época), tinham um modelo de reencarnação bem diferente do que estamos acostumados porque, para Plotino, nós nunca chegamos realmente a encarnar, e a ilusão de que encarnamos nasce unicamente do fato de nossa consciência se identificar com as imagens que ela vê refletidas no Espelho de Dionísio, e que não são senão este mundo.
Mas, como vimos, para o platonismo em geral, e os neoplatônicos não são exceção, tudo o que existe nesse mundo é um reflexo distorcido das Formas arquetípicas. Como diz o filósofo Jan Opsomer, falando sobre Proclo, outro pensador neoplatônico importante que também interpreta alegoricamente o mito de Dionísio, quando o deus olha no espelho, “vê sua própria imagem refletida na circunferência externa do mundo. (…) Em um outro sentido, porém, ele olha para o que é inteligível e imutável, pois o que ele vê é a si mesmo e às imagens das Formas dentro de si mesmo”.
Por conta disso, as mesmas imagens que atraem a consciência para um mundo ilusório, no qual ela se aliena de si própria, se trabalhadas adequadamente, podem servir para redespertar na alma a lembrança de suas verdadeiras origens. Nessa função, em vez de simulacros enganadores, as imagens se transformam em símbolos arquetípicos. E é por meio da manipulação ritual de símbolos arquetípicos que os neoplatônicos – cujos objetivos foram herdados na Tradição Esotérica Ocidental pela chamada Alta Magia – buscavam expandir sua consciência, de modo a elevá-la novamente até o Uno.
Mas onde entra o Tarô nessa história? É que a manipulação ritual dos símbolos arquetípicos não envolvia apenas operações de invocação e invocação, mas também de divinação.
E isso envolvia o uso de oráculos.
O Oráculo do Torcicolo
A despeito das lendas e fake news que correm no meio ocultista pelo menos desde o séc. XVIII, atribuindo as origens das cartas aos egípcios, aos atlantes ou aos deuses astronautas – daqui a pouco aparece alguém dizendo que elas foram criadas em Ratanabá há 450 milhões de anos –, o fato é que o Tarô, pelo menos da forma como conhecemos, não existia na Antiguidade. Mas isso não significa que não houvesse oráculos, que afinal estão presentes no mínimo desde o Neolítico, talvez antes. Na própria Grécia, são famosos os Oráculos de Delfos ou as Sibilas, que continuaram profetizando durante o Império Romano e só desapareceram nominalmente às portas do Cristianismo.
Filósofos pós-Iluministas, escorados no mais estrito racionalismo, tendem a desprezar divinação e oráculos como superstição, mas a atitude dos filósofos antigos não podia ser mais oposta. “Oráculos e filosofia”, diz a historiadora Crystal Addey, “estavam profundamente conectados na Antiguidade, no mínimo desde a Segunda Sofística até o final da Antiguidade Tardia.” A autora prossegue:
“Filosofia nos oráculos” era identificada como um traço definidor da atividade orácular no segundo e terceiro séculos d.C.: tanto nas fontes literárias quanto epigráficas são atestados muitos oráculos que apresentam tom e conteúdo filosóficos e teológicos. “Os oráculos na filosofia” é também um dos traços definidores da atividade filosófica durante esse período e subsequentemente: muitos filósofos discutem e debatem a operação dos oráculos, o conteúdo de formulações oraculares específicas e, em um sentido geral, o papel de vários tipos de divinação dentro da filosofia. Muitos filósofos também consultavam oráculos, e alguns inclusive alegavam ser profetas (ou profetisas), eles próprios com a habilidade de proferir oráculos. Oráculos eram vistos como uma importante fonte da verdade na religião e filosofia da Antiguidade Tardia, particularmente no Neoplatonismo.
A importância atribuída aos oráculos era tão grande que um dos principais textos neoplatônicos intitulava-se Oráculos Caldeus e pelo menos uma parte dele foi supostamente canalizada em transe por Juliano, o Caldeu, ou talvez seu filho, Juliano, o Teurgista, no séc. II d.C. Filósofos como Proclo, que mencionamos acima, tinham os Oráculos Caldeus em alta conta, e eles continuaram desfrutando da estima de hermetistas e esoteristas até o séc. XIX, quando foram traduzidos para o inglês por ninguém menos que William Wynn Westcott, um dos fundadores da Golden Dawn, a ordem esotérica que mais influenciou o Ocultismo contemporâneo.
Entre outras coisas, o texto descreve o Iynx (ἴυγξ), um instrumento oracular que se prestava tanto a rituais de invocação quanto a atividades mânticas, isto é, divinatórias. E embora o instrumento em si fosse bem diferente, tanto em termos de aparência quanto modo de usar, não deixa de ter analogias importantes com o que, séculos mais tarde, viria a se tornar o Tarô.
O Iynx original, pré-neoplatônico, era um aparato usado em feitiçaria, e é daí que vem o inglês jinx, que até hoje significa encantamento ou maldição. Ἲυγξ era o nome grego do Jynx torquilla, pássaro que no Brasil é conhecido como Torcicolo. De acordo com o Wiktionary, os feiticeiros costumavam amarrar a ave a uma roda, que giravam na crença de que com isso atrairiam o coração da vítima, forçando-a a obedecer, prática “muito usada para recuperar amantes infiéis. Essa operação era chamada de ἕλκειν ἴυγγα ἐπί τινι (hélkein íunga epí tini, ‘colocar o pássaro mágico contra alguém’)”.
A única coisa que o Iynx neoplatônico tinha em comum com seu antecessor não-filosófico, porém, era a forma circular. Segundo os Oráculos Caldeus e outras fontes da época, o Iynx era um disco sobre o qual se inscreviam diferentes símbolos geométricos, um pouco como o aletômetro que Phillip Pullman imaginou em His Dark Materials (no Brasil intitulado, bizarramente, de Fronteiras do Universo).
Um dos princípios platônicos, que Jung redescobriria empiricamente no séc. XX, é o de que os arquétipos são essencialmente estruturas geométricas, daí Platão chamá-los de Formas (Εἶδος, de onde “Ideia”), e, por esse motivo, os símbolos do Iynx eram compostos sobretudo por linhas e círculos que, combinados, permitiam representar não só os próprios arquétipos, mas também as almas individuais que contêm um reflexo ou imagem das Formas arquetípicas, como Proclo comentou a respeito do Espelho de Dionísio. O mesmo Proclo que, diga-se de passagem, era useiro e vezeiro no uso do Iynx, com o qual, segundo consta, ele teria conseguido fazer chover.
Mensageiros dos Deuses
À primeira vista, esse tipo de uso mágico do Iynx depõe contra a analogia com o Tarô. No entanto, a função divinatória, mesmo sendo a mais conhecida, está longe de ser a única aplicação do Tarô e nas últimas décadas tem surgido todo um subgênero de livros, com autores que vão da Magia Cerimonial à Bruxaria, se propondo a ensinar como empregar as cartas em rituais mágicos, . Vale a pena mencionar que alguns autores, como J. H. Brennan, advogam o uso mágico de outro oráculo tão famoso quanto o Tarô, o I Ching, o que levanta a possibilidade de que, ao lado de seu aspecto receptivo, mântico, todo oráculo tenha também uma faceta ativa, mágica.
Que o Iynx também era empregado como oráculo não resta a menor dúvida. Como diz Ioan P. Couliano, o controverso historiador das religiões romeno: “O instrumento, ainda usado por Proclo, um dos últimos neoplatônicos, era chamado Iynx, em homenagem a um tipo de pássaro de fogo que se supunha transmitir mensagens entre o mundo do intelecto e o mundo visível.” Segundo Hans Lewy, que o próprio Couliano considerava como o maior especialista nos Oráculos Caldeus, além de batizar o instrumento, Ἲυγξ é também o nome que o livro dá a uma categoria de entidades espirituais “consideradas como mensageiros dos deuses” e “transmissores de mensagens”, e que estão associadas ao que os Oráculos Caldeus chamam de Sustentáculos ou Apoiadores (Ἀνοχεῖς): “A substância espiritual desses ‘Sustentáculos’ é idêntica à das ‘Fontes’ (i.e., as Ideias) que, de acordo com um fragmento, são ‘sustentadas’ pelas Iynges.”
O mais intrigante é que, a despeito ou talvez por causa mesmo de seu papel na cosmologia neoplatônica dos Oráculos, as Iynges são entendidas essencialmente como símbolos e, mais do que isso, símbolos que correspondem a coisas mundanas. Nas palavras de Couliano:
Em todo caso, o disco dos teurgistas era inscrito com símbolos mágicos – os mesmos que reaparecem nos talismãs caldeus – representando, provavelmente de forma gráfica, os mesmos símbolos que, tendo sido “espalhados” no mundo pelo Supremo Intelecto, podiam ser expressos igualmente por fórmulas solenes (synthema).
Hans Lewy, que foi provavelmente a fonte de Couliano, complementa:
De acordo com esse texto, o Intelecto Paterno semeou palavras mágicas por todo o mundo, de forma que a alma humana pudesse apreender os seres noéticos. Assim, os nomes mágicos usados pelos teurgistas a fim de se comunicar com os poderes supramundanos são idênticas aos pensamentos do Supremo Ser Transcendente.
Supremo Intelecto, Intelecto Paterno ou Supremo Ser Transcendente referem-se todos ao Uno, a Consciência universal. Os “seres noéticos” e os “poderes supramundanos”, que os neoplatônicos identificavam aos deuses, são uma personificação das próprias Formas platônicas, os arquétipos.
Já synthema, o termo que Couliano traduz como “fórmula solene” e Lewy como “nome mágico”, duas interpretações fundamentalmente incorretas, foi extensamente estudado por Gregory Shaw, professor de Estudos Religiosos do Stonehill College, em Theurgy and the Soul, onde ele mostra que os sintemas correspondem ao que a Tradição Esotérica Ocidental mais tarde vai chamar de signaturas: símbolos naturais que remetem a forças arquetípicas. Sintemas incluem não só formas geométricas, mas também cores, perfumes, animais e plantas, de fato todo e qualquer objeto capaz de simbolizar os arquétipos. Assim, por exemplo, o heliótropo é um sintema do deus Apolo porque suas flores, acreditava-se, apontam para o Sol. Diz Shaw:
Os synthemata embutidos na natureza não se limitavam apenas à matéria densa, mas também estavam presentes em certos encantamentos (…), misturas (…), caracteres traçados [na terra] (…) e nos nomes inefáveis capazes de levar a alma até a presença dos deuses (…) Iâmblico menciona ainda certas melodias e ritmos que davam à alma participação direta (…) nos deuses. Os synthemata, em qualquer uma de suas expressões, eram divinizadores, e também pela mesma razão: eles traziam a marca do deus e eram capazes de despertar as almas para a divindade que eles simbolizavam.
Então, reunindo tudo o que dissemos até aqui, o Iynx era um instrumento composto por símbolos que podiam ser usados não só como oráculo ou como ferramenta para invocar as forças arquetípicas e canalizá-las para fins mágicos, mas também como foco de práticas contemplativas cujo objetivo era elevar a consciência individual etapa por etapa até retornar ao Uno, que é sua verdadeira essência mais espiritual.
Este último uso é notavelmente semelhante ao modo como os adeptos da Golden Dawn empregavam os Arcanos Maiores do Tarô – com a diferença de que o referencial neoplatônico era astrológico, enquanto a Golden Dawn, embora incorporasse maciçamente correspondências astrológicas, subordinava-as ao simbolismo cabalístico. Mais ainda, como veremos na próxima edição da newsletter (porque esta já periga virar um tratado), a contemplação das cartas com o objetivo de elevar a consciência até o nível dos arquétipos foi a primeiríssima utilização do Tarô, muito antes que se começasse a usá-lo para ler a sorte.
Ditadas por um Anjo
Em O Caminho do Tarô, que citamos lá no começo, Jodorowsky reclama que cada autor projeta sobre as cartas suas próprias crenças e teorias: “Na realidade, em vez de falar objetivamente do Tarô, os autores faziam o próprio autorretrato, embutindo nele [suas] superstições. Encontrei crenças maçônicas, taoístas, budistas, cristãs, astrológicas, alquímicas, tântricas, sufis etc.”
Depois dessas tentativas de enxertar no Tarô todo tipo de sistemas esotéricos, escrevem-se milhares de livros baseados em uma inexistente "tradição" que demonstram que o Tarô foi criado pelos egípcios, pelos caldeus, pelos hebreus, pelos árabes, pelos hindus, pelos gregos, pelos chineses, pelos maias, pelos extraterrestres, evocando-se também Atlântida e Adão, a quem se atribui a autoria dos desenhos das primeiras cartas, ditadas por um anjo. […] Cada novo baralho de cartas encerra a subjetividade de seus autores, suas visões de mundo, seus preconceitos morais, seu limitado nível de consciência.
À primeira vista, ao puxar a brasa para a sardinha neoplatônica, pode parecer que estamos fazendo a mesmíssima coisa que os autores criticados por Jodorowsky (e que são basicamente todos, menos o próprio Jodorowsky). A diferença é que, ao contrário de extraterrestres e atlantes, para não falar dos anjos ditando as cartas, existem evidências históricas concretas de que o Tarô surgiu pela primeira vez nos círculos neoplatônicos.
Só que os neoplatônicos do Renascimento.
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