Ithell Colquhoun não é um nome familiar para o público nem na Inglaterra, onde ela nasceu em 1906. O que é uma pena. Como seus contemporâneos mais conhecidos, Leonora Carrington e Austin Osman Spare, Colquhoun foi uma artista plástica e ocultista que dedicou sua vida a explorar a intersecção entre essas duas áreas, seja em suas obras, que oscilam entre o surrealismo e a pintura abstrata, seja em romances oníricos como Goose of Hermogenes ou I Saw Water e em seus escritos propriamente esotéricos.
Chegou a fazer parte do Grupo Surrealista Britânico, do qual foi expulsa graças ao sectarismo que sempre foi uma praga no movimento – André Breton, o pai do Surrealismo francês, era notório por excomungar membros semana sim, semana sim. Por motivos que só deus sabe, o grupo britânico proibia seus membros de fazer parte de qualquer outra associação, fosse ou não artística. Interessada em ocultismo desde os 17 anos, quando encontrou os textos de Crowley, Colquhoun era membro de vários grupos esotéricos, inclusive a Golden Dawn, a O.T.O. e a Quest Society de G. R. S. Mead, e fez o que qualquer pessoa sensata faria: deu uma banana para os Surrealistas Britânicos e seguiu carreira solo pelo resto da vida.
Como Spare, pagou um preço alto pela independência, sendo marginalizada por seus pares e ignorada pela crítica, que não via com bons olhos o envolvimento com o ocultismo que Colquhoun nunca fez questão de esconder, muito pelo contrário. E em 1977, onze anos de morrer, Colquhoun expôs numa pequena galeria da Cornualha o que viria a se tornar sua obra mais conhecida, um conjunto de 78 pinturas abstratas constituindo um Tarô como nunca antes tinha-se visto: Taro as Colour.
Psicomorfologia e o Tarô
“Este projeto para um baralho de Taro”, diz ela no texto de apresentação, “é ao mesmo tempo pessoal e tradicional. Ele apresenta a essência de cada carta através dos meios não-figurativos da cor pura, aplicada automaticamente, à maneira do movimento Psicomorfológico no Surrealismo.”
Colquhoun escrevia Taro e não Tarot, a grafia mais usual em inglês, por conta da teoria que vê o nome do Tarô como um anagrama do latim Rota, roda, e que alguns relacionam ao famoso palíndromo SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS, que inspirou a obra-prima de Osman Lins, Avalovara, bem como o horrendo Tenet, do superestimado Christopher Nolan.
Já o que Colquhoun chama de psicomorfologia é uma técnica surrealista que estava sendo desenvolvida pelo grupo de pintores agregados ao redor de André Breton na época em que ela o conheceu pessoalmente, e que Colquhoun define como “um esforço para alcançar aquele nível de consciência algumas vezes perceptível entre o sono e o despertar, e que consiste em formas coloridas, orgânicas (não-geométricas) em estado de fluxo”. Ou seja, o que os psicólogos conhecem como hipnagogia.
O resultado é um Tarô com imagens belas e evocativas, mas puramente abstratas, que parecem um cruzamento entre as pinturas de Max Ernst e os borrões de tinta do teste de Rorschach. A comparação não é gratuita. Ao eliminar todos os elementos figurativos e reduzir as cartas a sua essência básica, formas e cores, Colquhoun tornou mais fácil perceber a dinâmica, mecânica e propósito do Tarô.
Experiências Visionárias
Apesar do Taro as Colour ter sido criado com técnicas surrealistas de automatismo psíquico, se engana quem achar que as formas e cores de cada carta são puramente aleatórias. Pelo contrário, o Tarô de Colquhoun alia a habilidade inigualável da arte surrealista de mergulhar nas profundezas do inconsciente a um rigor simbólico que Colquhoun herdou da Golden Dawn:
É um baralho tradicional ao seguir as instruções extraídas dos textos da Ordem Hermética da Golden Dawn. É, contudo, distinto do baralho figurativo desenvolvido nos primeiros dias da Ordem por MacGregor Mathers e sua esposa Moina para uso dos estudantes.
Colquhoun compara os nomes das cartas a mantras e descreve o desenho como yantras, que é como o Tantra hindu denomina o que conhecemos no ocidente mais pelo termo usado no Budismo Tântrico e popularizado pela psicologia junguiana, mandalas: diagramas geométricos cuja contemplação meditativa, da mesma forma que os Arcanos Maiores do Tarô, permite acessar as forças arquetípicas que constituem tanto a nossa psique quanto a própria realidade, pelo menos da perspectiva neoplatônica herdada pela Tradição Esotérica Ocidental e da qual Colquhoun compartilha. Como explica Richard Shillitoe, um dos responsáveis pela redescoberta das obras de Colquhoun:
Ela via o uso do baralho como uma prática mântica que podia auxiliar o adepto a alcançar planos mais elevados e sutis. Energizadas por experiências visionárias e espirituais, as cartas ajudam a guiar o praticante até essas experiências.
É o mesmo propósito com que os neoplatônicos antigos usavam os oráculos e que, se eu estiver correto, foi o primeiro uso do Tarô no Renascimento, antes que ele começasse a ser empregado como jogo de cartas ou técnica divinatória. E não por acaso. Além de ser uma das fontes da Tradição Esotérica Ocidental, como temos explorado desde a primeira edição da newsletter, o Neoplatonismo (junto com o Gnosticismo) influenciou diretamente a própria Colquhoun que, em um de seus escritos, “The Isis Tablet or Mensa Isiaca”, utiliza a cosmogonia dos Oráculos Caldeus – um dos textos seminais do Neoplatonismo tardio e do qual já falamos bastante anteriormente, uma vez que ele descreve, entre outras coisas, um antecessor do Tarô chamado Iynx – para interpretar uma relíquia pseudo-egípcia do séc. I d.C., provavelmente relacionada ao culto helenístico de Ísis, já que a deusa é representada em destaque no centro do desenho, cercada por outras divindades.
A Mesa de Ísis
O mais interessante é que, na interpretação de Colquhoun, a deusa Ísis se identifica à própria Iynx que, nos Oráculos Caldeus, além de designar um instrumento divinatório, também era o nome de uma categoria de seres celestes que, na visão neoplatônica, estavam intimamente associados aos arquétipos. Para Colquhoun, que se apoia na tradução dos Oráculos Caldeus feita por Wynn Westcott, um dos fundadores da Golden Dawn, IYNX torna-se o nome de uma única divindade feminina que, além de Ísis, Colquhon identifica à Alma do Mundo neoplatônica, a mesma Consciência universal da qual Dionísio é uma personificação masculina:
A figura sentada é a Mente Suprema ou IYNX Pantomorfa, a Esfinge multiforme, Logos, o Verbo ou Alma do Mundo, e é colocada aqui no meio, como se fosse no centro da Natureza universal.
O círculo se fecha quando descobrimos que Wynn Westcott não só considerava a Mesa de Ísis a chave do Tarô como se apoiou nela para começar a construir a interpretação dada pela Golden Dawn às cartas, trabalho depois completado por MacGregor e Moina Mathers. Westcott seguia na esteira de Éliphas Lévi, que também se baseou na cosmogonia neoplatônica, combinada com a Cabala hebraica, para sugerir uma interpretação esotérica para o artefato. Westcott cita a edição inglesa de Histoire de la Magie (ligeiramente diferente da tradução brasileira da Pensamento), onde Lévi escreve:
A mais curiosa e, ao mesmo tempo, a mais completa chave do Tarô, nossa versão moderna do famoso Livro de Toth, encontra-se na Tábua Isíaca do Cardeal Bembo, que foi representada por Kircher em sua obra sobre o Egito: esse erudito jesuíta adivinhou, sem ser capaz de estabelecer a prova completa, que essa Tábua continha uma chave hieroglífica para o alfabeto sagrado. Ela nos apresenta três grupos de desenhos, acima as doze mansões celestiais, e abaixo os doze laboriosos períodos do ano, e em sua porção central os vinte e um signos sagrados que correspondem às letras do alfabeto hebraico. No meio da porção central assenta-se a imagem da IYNX Pantomórfica, um emblema da Existência Universal, correspondendo à letra hebraica yod ou I.
Sabemos hoje que, por erudito que fosse, Athanasius Kircher entendia tanto da língua egípcia quanto eu de matemática, ou seja, rigorosamente nada. A língua egípcia só foi decifrada no séc. XIX, por Champollion, quando se constatou que as imaginativas traduções de Kircher passam longe do verdadeiro significado dos hieróglifos que, pra começo de conversa, nem sequer são um alfabeto, como pensava o bom jesuíta.
Mas foi graças a suas leituras equivocadas que o simbolismo neoplatônico se introduziu no Tarô da Golden Dawn que, dessa forma, sem querer, redescobriu as raízes neoplatônicas dos Arcanos Maiores. Até porque, atirando no que viram, Lévi e Westcott acertaram no que não viram: o culto helenístico de Ísis, do qual a Mensa Isíaca parece ter se originado, influenciou profundamente a prática da teurgia neoplatônica, especialmente com Iâmblico que, além de filósofo, era sacerdote do culto, e cujo tratado sobre teurgia intitulava-se Sobre os Mistérios Egípcios.
O Louco e o Eremita
Não sabemos se na Antiguidade Tardia a deusa Ísis chegou a ser sincretizada à Iynx, como sugerem Lévi, Westcott e Colquhoun, inclusive porque eles tratam a Iynx como uma entidade singular, quando tudo indica que as Iynges eram na verdade uma categoria de espíritos abstraídos do oráculo homônimo. Mas é curioso que Lévi lhe atribua a letra hebraica yod (י) que, no sistema de correspondências adotado pela Golden Dawn e seguido por Colquhoun, equivale ao Arcano IX, o Eremita, que ela contrasta com o Arcano 0, o Louco:
Ao Louco é designada a Cifra 0, que precede toda manifestação. Ao Eremita – o número 9, que completa e encerra o ciclo de manifestação. Nove também denota completamento, realização e, consequentemente – perfeição. Perfeição vem antes e está por trás de toda manifestação (0 - Louco) e no entanto, ao mesmo tempo, é a meta de todo o esforço (o Eremita). O Louco é um jovem olhando para cima à luz do amanhecer. O Eremita é um ancião barbado olhando para baixo à noite.
No primeiro post desta série, mostramos que o Louco se origina, pelo menos em parte, no deus Dionísio, que órficos e neoplatônicos viam como a Consciência universal, antes de sua fragmentação nas consciências individuais. E é exatamente assim que Colquhoun interpreta o Louco, ainda que sob uma roupagem mais teosófica do que neoplatônica:
O Louco é a Mônada Eterna, prestes a entrar em um ciclo de manifestação a fim de obter individualidade e existência consciente através de sucessivas encarnações nos reinos mineral, vegetal, animal e humano.
Correlativamente, como seu “aspecto oposto”, o Eremita representa para Colquhoun o final da jornada do Louco, diferente da maioria dos autores, que identificam o fim do Caminho ao Arcano XXI, o Mundo. A meta, no entanto, continua a mesma – restaurar a unidade original por meio da união entre a consciência individual e a Consciência Cósmica que, como os antigos gregos, poderíamos chamar de dionisíaca, e na qual as escolas não-duais da espiritualidade oriental, especialmente o Advaíta Vedanta e o Shaivismo de Kashmir, não teriam a menor dificuldade em reconhecer a figura do Jñani, o sábio que realizou a Iluminação e tornou-se um Jivanmukta, alguém que alcançou em vida a libertação da Roda do Renascimento:
O Eremita é o Sábio que foi liberado da Roda de Nascimento e Renascimento, a Roda da Necessidade, e que atingiu a união da consciência pessoal com a Vontade Cósmica.
Os Dois Eremitas
Com os anos, Colquhoun foi depurando sua abordagem do simbolismo do Tarô, eliminando todos os elementos figurativos. Assim, o ancião barbudo, seu cajado e a lanterna desaparecem completamente da carta do Eremita, restando apenas o amarelo-esverdeado que lhe corresponde no sistema de atribuições da Golden Dawn:
Alguém que fosse usar o Arcano IX como foco de uma prática meditativa tradicional, como as desenvolvidas pela Golden Dawn, visualizaria diante de si o ancião barbudo em um cenário composto a partir dos sintemas associados à carta (por exemplo, um céu amarelo-esverdeado, o chão coberto de narcisos, talvez um topázio engastado no cajado do Eremita, etc). O ancião guiaria o praticante através de seu reino, que é uma representação simbólica da esfera regida pelo arquétipo, explicando o simbolismo em primeira mão, por meio de um diálogo imaginal que, no fundo, é uma forma mais estruturada da técnica de Imaginação Ativa junguiana, e que é conhecida nos círculos esotéricos como pathworking (literalmente “trabalho com os caminhos”, porque os vinte e dois Arcanos Maiores são atribuídos aos vinte e dois caminhos da Árvore da Vida na Cabala).
Com a versão de Ithell Colquhoun, essa prática mais estruturada se torna muito mais difícil, senão impossível. Em vez disso, o adepto contempla a carta como se fosse uma mandala, recitando mentalmente ou em voz alta o título esotérico do Arcano que, no caso do Eremita, é “Profeta do Eterno, Mago da Voz do Poder”, de preferência sincronizando com a respiração. Eventualmente, o meditador entra em um estado de transe, assumindo que quaisquer imagens hipnagógicas que surgirem espontaneamente estarão sendo geradas pela energia arquetípica da carta.
Ambas as formas têm vantagens e desvantagens. Mas a prática sugerida por Ithell Colquhoun, justamente por ser menos estruturada, tende a produzir um material mais cru, menos filtrado pelas interpretações tradicionais, o que dá um acesso muito mais imediato às energias arquetípicas. Que é, no final das contas, o propósito último de todo Caminho espiritual.
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É impressão minha ou a Mesa de Ísis aqui descrita guarda uma grande semelhança com The Holy Table da magia Enochiana?